VOCÊ É UM BRÓDER!

Notas avulsas sobre a banda sonora da "Supernova" e uma viagem

à Bahia de Todos os Santos

Carlos Alberto Augusto copyright 2000

 

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O Poeta, personagem da “Supernova”, o texto de autoria de Abel Neves, diz explicitamente a dada altura : “Vivemos num território de sons!” Foi naturalmente uma frase que retive quando li o texto pela primeira vez.

(um “território de sons” II)

Já o tinha dito em diversas ocasiões, mas reafirmo-o aqui para que conste: “Supernova” é um texto magnífico, que contém uma miríade de sugestões sonoras, pouco usuais em textos de teatro, revelando uma grande sensibilidade do autor para a tantas vezes negligenciada, dimensão sonora desta arte. “Supernova” um texto onde se constrói um universo fascinante que passa também pelo som, pelos sons.

(o convite)

Quando o Fernando Mora Ramos me descreveu o projecto, então com o nome de código de “Achamento” e me dirigiu o convite para ser o responsável pela banda sonora fiquei sinceramente entusiasmado. Tratava-se de uma ideia aliciante ou, como por vezes se diz, de um desafio. E nesse desafio perfilavam-se vários elementos que –a experiência diz-me isso– não se cruzam habitualmente num trabalho desta natureza: um texto feito de raiz, a oportunidade de explorar alguns novos meios de produção que recentemente tinham passado a fazer parte do meu ferramental de compositor, o trabalho na Bahia, a colaboração com os nossos colegas baianos, uma equipa que se revelou desde logo entusiástica e interessantíssima. Junta, desde o primeiro momento, na multiplicidade e na cumplicidade das suas especialidades.

(a preparação)

Tentei fazer o trabalho de casa. Reli a Carta de Pero Vaz de Caminha, com a qual me não cruzava havia muito tempo. A Carta serviu de pretexto para todo este projecto. Analisámo- la e discutímo-la. Especulámos sobre os modos possíveis como iria estar presente no texto final. Que peso lhe daria o Abel? Chegou o momento do confronto com a versão final do texto da peça. A expectativa com que o aguardei (o aguardámos) foi grande.

 

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(a expectativa)

O Abel enviou-me o texto por email. Saiu das mãos do autor e chegou à minhas no tempo mínimo que leva a percorrer o ciberespaço. Suavizou a natural expectativa. Quando o li pela primeira vez fiquei bastante surpreendido. O universo sonoro da peça surgiu de forma bem explícita desde a primeira linha. Recordo-me perguntar se este universo sonoro, que se estava a formar após estas leituras iniciais da peça, corresponderia àquele que o autor teria imaginado e que de foma tão inequívoca fixou no texto. Recordo-me pensar se o autor não me teria estado de alguma forma a desafiar...

(a Bahia esperada)

Partimos para Salvador. Na bagagem, um gravador DAT e uns preciosos microfones Danish Pro Audio (cortesia do Paulo e da AudioPro) que me permitiriam documentar acusticamente a viagem e recolher material para o meu trabalho. Levava também alguns esboços e pistas de trabalho. Mas, levava, sobretudo, uma enorme disponibilidade para me deixar tentar pelo novo universo que iria conhecer. Um sentimento naturalmente temperado pela noção de que existiam barreiras estéticas, técnicas e orçamentais a respeitar. Nesta minha primeira visita ao Brasil levava ainda as imagens (os clichés, se se quiser...) deste país e, particularmente, da Bahia, resultantes das leituras, dos filmes e outros ecos a que ao longo dos anos qualquer português é sujeito.

(a Bahia inesperada)

Chegado à Bahia fui imediatamente possuído pelo seu universo cultural e sensitivo –visual, táctil, cinético, sonoro e olfactivo– que, generosamente, se me ofereceu. Aguardavam-me grandes surpresas no meu percurso. A música brota fácil e abundante quando se vive num lugar como este. Mesmo que temporariamente. O problema que se me iria colocar foi, cedo o percebi, o de tentar ajustar as inúmeras e constantes sugestões que decorriam do trabalho e

da vivência diária naquelas terras com as necessidades e constrangimentos específicos deste projecto. Estávamos perante universo que era necessário gerir com sabedoria.

(as raízes do trabalho)

Decisivas para a evolução do meu próprio trabalho foram a observação do trabalho dos restantes membros da equipa e a participação no arranque deste projecto, designadamente, o trabalho de mesa iniciado prontamente após a chegada a Salvador. Decisivos foram os argutos comentários do Fernando, o precioso enquadramento de algumas cenas, a metaescrita revelada pelo Abel durante o trabalho de mesa, as finas observações dos actores brasileiros, os seus corpos, o seu movimento, os seus sons e os ritmos observados nas aulas do Paulo Ribeiro, a sua transbordante e aparentemente inesgotável energia.

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Decisivo foi também o contacto com o mundo sonoro da Bahia. A suspresa das constantes explosões sonoras. Os ritmos. O coro popular durante os espectáculos a que se nos foi dado assistir durante a nossa estada. Se os cantores baianos não são artistas do seu povo, então não sei o que poderá significar esta expressão. O permanente bordão que vibrava em todo o lado: no teatro, no quarto do hotel, nas ruas, nos mercados, nas praças. “Aonde vai já”, pensei eu várias vezes, “a minha luta contra o ruído! Eu quero ruído!” Os cantos dos pássaros. O “bem-te-vi” do nosso luso fascínio. As súbitas erupções de música, de cantos e ritmos, no meio da rua, nos corredores do hotel, nos táxis ou no barco que nos levou certa vez até Itaparica. Enquanto isso, continuava a recolher material e à noite no quarto do hotel esboçava as primeiras notas de música. Com tudo isto a banda sonora da “Supernova“começava a ganhar forma.

(os encontros)

A operação “Supernova“ proporcionou uma série de encontros (e de alguns desencontros...), descobertas e momentos de grande emoção que me marcaram e marcaram o resultado artístico do objecto sonoro que concebi.

Um primeiro momento decisivo foi o encontro com Virgínia Rodrigues, a grande cantora baiana. Sobre este encontro falarei mais abaixo. Interessante foi também o encontro com o Jarbas Bittencourt, o jovem e irrequieto compositor e director da banda Confraria da Bazófia, co-autor da banda sonora da“Supernova“ com o tema da Cyberjukebox e do forró final, e colaborador habitual do Teatro Vila Velha.

Interessante foi a nossa sessão de gravação no Conservatório de Música da Bahia durante a qual eu, o Jarbas, o seu irmão Leonardo e o professor e percussionista Jorge Sacramento tivemos oportunidade de gravar uma série de sequências concebidas para a abertura, que acabaram afinal por ter uma outra utilização, totalmente imprevista. De volta ao meu estúdio e graças à tecnologia digital, estas sequências foram ligadas aos instrumentos de plástico do José Eduardo Rocha (obrigado Zé Eduardo!) e utilizadas numa cena para a qual não tinham sido originalmente concebidas.

(surpresas: surpresa I)

O design sonoro da “Supernova“ ficou recheado de episódios e experiências marcantes. Três destas experiências merecem uma particular referência. A primeira foi proporcionada pela Virgínia Rodrigues a que com uma imensa generosidade, acedeu a cantar a música que viria a ser o tema principal da "Supernova". O modo como nos conhecemos, a sessão de gravação que decorreu na sua própria casa, a comovedora energia que colocou no seu trabalho e a profunda emoção que senti durante este nosso encontro são as notas mais significativas. Só hoje percebo que a cantora põe a mesma emoção numa gravação feita deste modo despretencioso ou ao pisar um grande palco.

(surpresa II)

No início do nosso trabalho tinha uma ideia para a abertura que subsequentemente fui obrigado a modificar face à solução para que evoluia a coreografia do Paulo Ribeiro. A dificuldade desta abertura resultava da necessidade de juntar vários elementos conflituais: o lento movimento dos actores, a narração em voz off (que eu próprio fui encarregado de executar) do excerto da Carta de Pero Vaz de Caminha, as referências pictóricas e a tensão latente. Tive a ideia de utilizar uma versão instrumental do romance “Niña era la Iffanta”, para cuja execução convidei um grupo dirigido pelo Pedro Caldeira Cabral. Foram utilizadas réplicas de instrumentos da época. Posteriormente esta matéria-prima seria sujeita ao tratamento de um vocoder do meu sistema Kyma/Capybara. O resultado sonoro mantinha todas as características pretendidas: a referência histórica, a sua progressiva desagregação, a desejada tensão.

(surpresa III)

Uma outra das experiências importantes foi a do design da “harpa-cachoeira”. O som da cachoeira dominava o texto da Supernova. A cachoeira seria um keynote sound na terminologia de R. Murray Schafer. Há uma cena no texto em que Joana dialoga pela primeira vez com o Poeta perante a cachoeira. Perante o olhar da cachoeira, diria eu. Entre Joana e a cachoeira havia uma ligação que importava explorar. Queria transformar o som da cachoeira —claramente um dos personagens desta peça presente de modo explícito nesta cena em particular— no “acompanhamento” de uma canção que, o texto assim o especificava, teria de ser cantada nesta cena. Como transformar uma cachoeira num instrumento musical?

Construí o som de uma cachoeira a partir de um único pingo de água. Este pingo foi depois “granulado”, segundo um método -a síntese granular- que foi desenvolvido pelo meu mestre e amigo Barry Truax. Já tinha usado este método em 1989 na música de uma outra peça, o “Arlequim polido pelo amor”, também uma encenação (1989) de Fernando Mora Ramos, embora na altura o facto tenha passado despercebido. Foi assim possível criar um espectro sonoro amplo, qualquer coisa próxima do ruído branco. Teoricamente, todas as frequencias estariam presentes neste som. Tratava-se agora de extrair deste complexo sonoro os sons “musicais” deste inusitado “instrumento”. O meu amigo Agostino Di Scipio, compositor e

virtuoso programador do sistema Kyma/Capybara, deu-me algumas sugestões que tratei de explorar. Por fim, após um longo trabalho, consegui criar as ferramentas de software com as quais o Capybara iria produzir uma harpa-cachoeira. O pingo de água, único, gravado num vulgar lavatório, seria processado por um gerador de grãos sonoros, que gerou pequenas amostras com cerca de 30 ms de duração. Assim foi possível produzir uma compacta nuvem de som, próxima do ruído quase branco de uma cachoeira verdadeira. Este nuvem sonora iria ser, por sua vez, passada através de um filtro do tipo ressoador harmónico, cujas frequências centrais seriam controladas por um teclado polifónico midi. Desta forma, o som de espectro largo da cachoeira poderia ser filtrado a cada momento e através deste teclado tornava-se possível a passagem apenas das frequências correspondentes à estrutura harmónica que concebi para a canção.

(epílogo baiano)

Já depois da estreia aproveitei a minha permanência em Salvador para adquirir alguns instrumentos de percussão. Pedi ao Buiú, o exuberante percussionista do “Cabaré da Rrrrraça!” –um êxito em cena no Teatro Vila Velha há já longo tempo– para me ajudar a encontrar bons instrumentos de percussão, nesta terra de música.

Visitámos várias lojas, acompanhados pelo Alberto Serra, pela câmara atenta do Acácio Carreira (o autor das fotos que ilustram este artigo) e por outros amigos. Observámos e testámos uma série de instrumentos. Enquanto nos deslocávamos para uma dessas lojas, pertencente ao Mestre Lua, o Buiú disse-me: “- Esta loja que vamos visitar é legal. O Lua é um bróder!” Um bróder significa na gíria baiana um irmão, um sujeito fixe, com samba. Conheci o Mestre Lua, mestre de capoeira e fantástico percussionista, homem experiente, comunicativo, afável e incrivelmente talentoso. Observámos a sua loja e os seus instrumentos, que ele próprio constrói e que vão parar aos quatro cantos do mundo. Vimos tudo detalhadamente, tocámos com ele e divertimo- nos. Claro que à porta da loja havia já, sem darmos por isso, um rancho de gente entusiasmada, dançando.

No dia seguinte voltei lá, mais discretamente, com o meu filho Hugo. Tinha decidido levar mais um par de instrumentos que, na véspera, me tinham ficado debaixo de olho. Estivemos à conversa com ele longo tempo. Tive então ocasião de lhe dizer o que fazia e contei-lhe ao que tinha vindo. Falei-lhe do peça e da música, dos meus encontros e surpresas em Salvador. Ele disse-me que estaria em Portugal para uma “Olimpíada de Capoeira” a decorrer no fim do ano. Disse-lhe que teríamos de nos encontrar quando nos visitasse. Teria de conhecer alguns percussionistas portugueses. Sorriu. Do fundo dos seus olhos brilhantes, no meio das suas longas rastas concordou: “Temos de nos encontrar, claro, temos de tocar!” acrescentando, em jeito de justificação, “Você é um bróder!”

Não foi fácil produzir esta banda sonora da Supernova. Mas, confesso que parti feliz com o que considero ter sido o melhor elogio que podia ter recebido na Bahia!

(post scriptum digital...)

Vários têm sido os contactos que mantive com o Teatro Vila Velha e a sua equipa desde a primeira visita em 2000. Fiz algumas canções para uma produção do texto enigmático de Brecht "Fatzer", encenado por Márcio Meirelles. Tiveram a gentileza de me enviar o disco das "trilhas sonoras" do Jarbas para o Vila. Foi com enorme prazer que revi, recentemente em Coimbra, o Márcio, a Xica, a Virgínia e os actores do Vila que nos vieram deslumbrar com vários espectáculos no âmbito da Estação da Cena Lusófona organizada para Coimbra, Capital Nacional da Cultura 2003. A minha ternura por toda esta gente não tem limites. Um dia destes pego mesmo nas malas e correspondo ao teu convite, Márcio!

 

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fotos de Acácio Carreira © 2000

Primeira publicação: Adágio n. 27, Junho-Setembro, 2000. Revisão e edição electrónica 2002-2004

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