O CENÁRIO ACÚSTICO DO TEATRO

por Carlos Alberto Augusto, © 1994

 

 

O teatro é um universo de dimensões deliberadamente manipuladas. Mas, não se trata de um universo homogéneo. O universo do teatro compõe-se de espaços separados mas convergentes, possuindo, cada um deles, a sua coerência própria: o espaço do texto, o espaço visual e o espaço acústico. Interessa-me, nestas curtas notas, esboçar os aspectos problemáticos do espaço acústico e sublinhar, ao mesmo tempo, o papel que a electroacústica desempenha hoje na sua definição.

"Drama", no sentido em que os gregos o compreendiam, ou seja, aquilo que torna a vida possível, existe numa peça musical, numa pintura ou num texto. No teatro tudo se passa de um modo diferente. O drama resulta do conflito entre espaços.

Esta interacção entre espaços tem, no entanto, um carácter sinergético. Dela não resulta um mero somatório das partes, mas algo de totalmente diferente. Algo que lá não estava antes. As "artes das artes" obedecem todas a este princípio. A sinergia é a matéria prima das artes de síntese.

Detenhamo-nos, em particular, sobre o espaço visual e o espaço acústico do teatro. A sua natureza é diferente. O espaço visual é centrífugo. Os objectos vistos estão sempre ali. Situamo-nos na periferia do nosso campo visual. A visão é discreta e direcional. O corpo é, de certa forma, a fronteira deste espaço. O espaço acústico é centrípeto. O som chega- nos de todas as direcções e situamo-nos sempre no centro deste espaço assim definido. A audição é contínua e omnidirecional.

A imagem de um objecto cria distância. O som, pelo contrário, aproxima-o, ou "toca" o percipiente, e vence a distância. Talvez por isso a informação recebida pelo orgão de visão tenda a ser menos ambígua do que a recebida pelo orgão de audição. Situamo-nos, simultaneamente, na periferia do espaço auditivo e no centro do espaço visual.

 

item2

 

No que respeita o teatro, pode dizer-se, creio, que também pode ser da resolução desta dicotomia que resulta o drama, mas não me deterei aqui sobre essa matéria .

Ao longo da história do teatro verifica-se que a interacção dos seus espaços se faz, não de um modo horizontal, mas por via da sua hierarquização. Que não é circunstancial ou furtuita, antes obedecendo a um complexo processo de evolução.

Até ao período que segue de imediato o Renascimento, e a despeito das primeiras experiências no domínio da segmentação do espaço visual, designadamente com a introdução da perspectiva, é o som que constitui o elemento primário do drama. Para Vitrúvius era, apesar de tudo, a voz do actor com as suas qualidades musicais, como refere Y-Fu Tuan em "Segmented Worlds and the Self", o elemento primordial do teatro. Analogamente, a participação do público fazia-se, sobretudo, através do som. O universo teatral era "filtrado" através do som. Gradualmente, esta situação ir-se-á alterar.

À proximidade da coisa ouvida sucede a distância da coisa vista. Cenário e iluminação contribuirão para mudar o centro de gravidade do universo teatral. Ir-se-á assistir a uma profunda alteração deste universo com repercussões profundas em vários domínios: da técnica do actor à participação do público. Do círculo do cosmos, o teatro irá passar ao rectângulo do quarto. De participante, actor de algum modo, o espectador ir-se-á transformar em "voyeur", coberto pela escuridão da sala. O "filtro" visual passará a condicionar o universo teatral.

É minha convicção que devemos procurar um teatro em que a interaçcão dos espaços se faça horizontalmente. Em que, ao "teatro da leitura" suceda um teatro dos sentidos. A electroacústica pode para isso dar um contributo valioso. Uma apreciável economia de meios, um controlo sem precedentes sobre o espaço acústico, mas, sobretudo, a amplificação do sinal sonoro são alguns dos ganhos que a electroacústica proporciona ao teatro.

O design acústico do teatro terá, porém, de ter em conta a especial natureza do sinal electroacústico. Aquilo que R. Murray Schafer definiu como a natureza "esquizofónica" da electroacústica. Fonte e sinal estão separados. A origem física do sinal não corresponde à sua origem real. As consequências desta simples constatação são vastas e estendem-se da música electrónica à rádio, do telefone ao teatro.

Numa primeira fase, afigura-se que o espaço acústico do teatro se transformou, por via da electroacústica, num espaço para ser "visto". O som eléctrico é, de certa forma, mostrado ao público. Repare-se, por exemplo, no modo como estão, geralmente, dispostas as colunas de som, funcionando como uma espécie de proscénio acústico.

Mas, a electroacústica permite ir muito mais longe. O teatro electroacústico deverá ser aquele que permita a coexistància horizontal dos espaços. A encenação da peça de Jean- Pierre Sarrazac "O Menino Rei" de Fernando Mora Ramos para o Teatro da Rainha (1987, constitui um exemplo interessante da criação de um espaço acústico novo, baseado nas possibilidades proporcionadas pela electroacústica. Para esta produção foi concebido um sistema que compreendia dois espaços estereofónicos (à boca e ao fundo de cena) e um espaço octofónico (por baixo dos lugares dos espectadores). Este sistema permitiu definir, num auditório de arquitectura tradicional, os espaços de cena e da plateia de uma forma integrada, como se de um espaço circular se tratasse. Não esgotando, naturalmente, as possibilidades da electroacústica, este sistema aponta alguns caminhos possíveis aguardando experimentação.

A renovação do cenário acústico do teatro traz alguns encargos suplementares mas constitui um desafio inevitável. A electroacústica é hoje a ferramenta indispensável para que esta renovação se torne possível. O preconceito visual emudece e o preconceito sonoro cega. Afigura-se, pois, indispensável a construção de um teatro sem preconceitos, de um verdadeiro teatro dos sentidos. Mas este teatro sem preconceitos não se construirá sem consequências e o debate sobre esta matéria está aberto à nossa reflexão conjunta.

 

Primeira publicação Adágio n. 1, Nov-Dez 1990. Revisão e edição electrónica Agosto 2002.

return to Writings